Nova Lei de Licitações e controle externo: avanço ou retrocesso?
Tipo:
Artigo
Data de Publicação:
Ementa / Resumo:

Nova Lei de Licitações e controle externo: avanço ou retrocesso?

*Edgard Camargo Rodrigues

Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)

Já em vigor, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133, de 1º de abril de 2021) propôs um período de vacância opcional de dois anos, em que a Administração pode desde logo adotá-la ou prosseguir sob a égide da Lei 8.666/93 até 4 de abril de 2023. A escolha é livre, só vedado mesclar as disposições de uma e de outra. De qualquer modo, dependendo ainda de necessária regulamentação, temerária e incerta é sua pronta execução, valendo observar recente orientação da Advocacia Geral da União destinada aos órgãos da administração federal (Parecer nº 00002/2021/CNMLC/CGU/AGU).

Norma de grande fôlego, a nova lei procura regular o processo de aquisição de bens e serviços pela administração pública e o faz em minúcias distribuídas em 194 artigos, disposições que buscam disciplinar a operação e gestão de licitações e contratos com observância obrigatória de pelo menos vinte e seis princípios, alguns até curiosos, como o princípio do parcelamento e o da cooperação.

De abrangência nacional, por conter normas gerais (CF/1988, art. 22, XXVII)([1]) tem o elevado propósito de organizar toda e qualquer ação que implique em dispêndio do dinheiro público com obras, compras ou contratação de serviços e assegurar sua correta destinação. Fácil constatar que o legislador optou por fazê-lo de maneira didática, daí aproximando-a antes a um manual de procedimento do que propriamente a um estatuto de normas ditas gerais, como enfaticamente anunciado em seu artigo 1º.

Há, sem dúvida, sensíveis progressos quando cotejada com as normas vigentes, com destaque para a Lei 8.666/93, especialmente na disciplina das ações preparatórias das licitações, analisada com a proficiência costumeira pelo Professor Marcos Perez, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em recente exposição na Escola Paulista de Contas Públicas deste Tribunal (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-vDxtpsO2Rg&t=1124s). Outros avanços poderão ser encontrados e considerados ao longo de sua extensão, mas é bem de ver e reconhecer que tudo se apoia na vivência e experiência dos atores da Administração ao longo dos anos e na construtiva ação de fiscalização e controle dos Tribunais de Contas com sua rica jurisprudência, elementos bem assimilados pelo legislador e transpostos para o conjunto de disposições da nova lei.

Por isso causa perplexidade o realinhamento adotado no Capítulo III do Título IV. Digo realinhamento porque afastada na sua inteireza a definição essencial de competência que com muita clareza é explicitada no artigo 113 da Lei 8.666/93([2]) quanto ao controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos por ela regidos.

É que na estrutura do Estado brasileiro, a única instituição com poder e obrigação de acompanhar e fazer cumprir no cotidiano o controle da atividade pública da qual decorra compromisso de ordem financeira e patrimonial é o Tribunal de Contas. Essas características decorrem de sua vinculação ao Poder Legislativo, que detém a primazia do controle externo da Administração (CF/1988, arts. 70 e 71)([3]). Daí desalentador constatar que o legislador relegou a plano secundário em matéria de tamanha envergadura e abrangência a presença e atuação dos Tribunais de Contas (que agirão de qualquer forma porque suas atribuições emanam diretamente da Constituição e não da lei ordinária).

O controle previsto no artigo 169 da nova lei dá-se pelo acionamento de três linhas de defesa distribuídas entre agentes da Administração e Tribunais de Contas, estes incluídos na terceira linha. Ora, estes são preceitos conhecidos de controle interno e parece contraproducente, para não dizer exótico, colocar no mesmo balaio o fiscal e o fiscalizado.

Mais adiante, diz o § 1º do artigo 171([4]) que, ao suspender cautelarmente o processo licitatório o Tribunal de Contas deverá pronunciar-se definitivamente sobre o mérito da irregularidade em vinte e cinco dias úteis. O órgão ou entidade deverá, a teor do § 2º([5]), prestar informações necessárias no prazo de dez dias úteis, prorrogáveis (!).

A ordem de suspensão de editais licitatórios com determinação de correções obrigatórias hoje encontra seu apoio no § 2º do artigo 113 da Lei 8.666/93([6]) e tem sido extraordinário instrumento de controle preventivo. No Tribunal de Contas do Estado de São Paulo constitui uma de suas mais relevantes atividades, porém em cotejo com a nova lei, com significativa diferença. Considera o Tribunal que toda e qualquer licitação contém uma finalidade de interesse social, geral e necessária, por isso que o prazo concedido ao administrador para responder aos questionamentos é de 48 horas! Não são dez dias prorrogáveis. É de se admitir que um edital lançado à praça já terá sido objeto de antecedentes estudos, avaliações e preparação necessários e amadurecidos. Por que razão necessitaria o agente público de tão largo tempo para se explicar? Como, enfim, se justifica afastar a fiscalização isenta dos Tribunais de Contas para mesclá-la toscamente com o controle interno? Só o Diabo sabe, mas ele também mora nos detalhes, o que talvez explique grafar tribunais de contas sempre em minúsculas. A Constituição da República o faz em maiúsculas. Vamos ter saudades da 8.666.

 


 

Notas:

([1]) Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

([2]) Lei 8.666, de 21 de junho de 1993.

Art. 113.  O controle das despesas decorrentes dos contratos e demais instrumentos regidos por esta Lei será feito pelo Tribunal de Contas competente, na forma da legislação pertinente, ficando os órgãos interessados da Administração responsáveis pela demonstração da legalidade e regularidade da despesa e execução, nos termos da Constituição e sem prejuízo do sistema de controle interno nela previsto.

([3]) Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

 Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II;

V - fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo;

VI - fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município;

VII - prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas;

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

IX - assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade;

X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;

XI - representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados.

([4]) Art. 171. Na fiscalização de controle será observado o seguinte: (...)

§ 1º Ao suspender cautelarmente o processo licitatório, o tribunal de contas deverá pronunciar-se definitivamente sobre o mérito da irregularidade que tenha dado causa à suspensão no prazo de 25 (vinte e cinco) dias úteis, contado da data do recebimento das informações a que se refere o § 2º deste artigo, prorrogável por igual período uma única vez, e definirá objetivamente:

I - as causas da ordem de suspensão;

II - o modo como será garantido o atendimento do interesse público obstado pela suspensão da licitação, no caso de objetos essenciais ou de contratação por emergência.

([5]) Art. 171 (...)

§ 2º Ao ser intimado da ordem de suspensão do processo licitatório, o órgão ou entidade deverá, no prazo de 10 (dez) dias úteis, admitida a prorrogação:

I - informar as medidas adotadas para cumprimento da decisão;

II - prestar todas as informações cabíveis;

III - proceder à apuração de responsabilidade, se for o caso.

([6]) § 2o  Os Tribunais de Contas e os órgãos integrantes do sistema de controle interno poderão solicitar para exame, até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópia de edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes forem determinadas.              (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)