Consulta acerca da contagem de tempo de serviço prestado durante o período vedado pela Lei Complementar nº 173/2020, para todos os efeitos administrativos, inclusive com consequência financeira.
6395.989.23; 6449.989.23
CONSULTAS. LEI COMPLEMENTAR Nº 173/2020. PROGRAMA FEDERATIVO DE COMBATE AO CORONAVÍRUS. GASTO PÚBLICO. DESPESAS COM PESSOAL. PRECEITOS QUE RESTRINGEM A GERAÇÃO E O AUMENTO DA DESPESA. NORMA CUJA CONSTITUCIONALIDADE FOI RATIFICADA PELO E. STF. CONTROLE QUE IGUALMENTE REVELOU A NATUREZA DE DIREITO FINANCEIRO DA NORMA. CARACTERÍSTICA JURÍDICA QUE LIMITA SEUS EFEITOS À ESFERA DAS FINANÇAS PÚBLICAS. DISPOSIÇÕES QUE, POR ISSO, NÃO SÃO IDÔNEAS PARA RESTRINGIR OU MODIFICAR O REGIME JURÍDICO DE SERVIDORES PÚBLICOS. PRESERVAÇÃO DE DIREITOS ASSENTADOS NOS RESPECTIVOS ESTATUTOS. AVERBAÇÃO DE VANTAGENS E ADICIONAIS AUFERIDOS NO PERÍODO DE EXCEÇÃO DA NORMA. POSSIBILIDADE. REPERCUSSÃO FINANCEIRA QUE, CONTUDO, DEVE OPERAR EFEITOS SOMENTE A PARTIR DE 1º/1/2022. PARECER QUE CONHECE DAS CONSULTAS E RESPONDE AOS INTERESSADOS SOBRE OS QUESITOS FORMULADOS.
Vistos, relatados e discutidos os autos identificados na epígrafe, processos em que foram examinadas consultas formuladas em face da edição da Lei Complementar Federal nº 173, de 27 de maio de 2020. Os autos integraram a pauta do E. Plenário do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo em sessão de 12 de julho de 2023 e, pelo voto dos Conselheiros Renato Martins Costa, Relator, Antonio Roque Citadini, Edgard Camargo Rodrigues, Robson Marinho e Cristiana de Castro Moraes, e do Substituto de Conselheiro Alexandre Manir Figueiredo Sarquis, na conformidade do previsto no artigo 2º, inciso XXV, da Lei Complementar nº 709/93 e no artigo 53, Parágrafo Único, item 8, do Regimento Interno e das correspondentes notas taquigráficas, deliberou-se, em preliminar, conhecer dos pedidos como Consultas e, quanto ao mérito, nos termos do artigo 117, §1º, item 5, do Regimento Interno, expede o presente PARECER em resposta às consultas formuladas, com Declaração de Voto Vencedor, conforme segue:
Os quesitos que fundamentam a matéria consultada pelos Executivos de Irapuã e Sales permitem revisitar, como há pouco referi, tema que tive a oportunidade de relatar a Vossas Excelências em passado não muito distante, com perspectiva distinta, é certo, mas igualmente em sede de consultas incidentes sobre variados conteúdos da mesma Lei Complementar nº 173/2020, que àquela altura repercutia seus primeiros efeitos logo após a sanção Presidencial.
Recordo, com isso, que as indagações então submetidas a este E. Plenário suscitaram debate de espectro mais amplo, dedicado que foi ao exame de diferentes dispositivos daquela norma, num momento em que, aliás, nosso Tribunal não media esforços para, já preservando os princípios da Responsabilidade Fiscal, orientar os jurisdicionados quanto à gestão pública em meio à crise agravada pela pandemia.
Lembro, dessa maneira, que este E. Plenário admitiu o temperamento necessário ao dimensionamento da eficácia da norma complementar que, ao ser integrada verticalmente ao ordenamento, “em algum momento revelaria particularidades suficientes para propiciar modos distintos de subsunção nos diferentes planos da União, Estados, DF e Municípios”.
Também lembro das ressalvas estabelecidas no texto e que seriam suficientes para amenizar certas restrições decorrentes do período de exceção (verificado entre a publicação do texto legal em 28/5/2020 e o dia 31/12/2021), como no caso do ato de despesa amparado em determinação legal anterior à calamidade, se não resultante aumento de despesa, abordagem absolutamente sintonizada, aliás, com as garantias constitucionais do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, Art. 5º, inciso XXXVI).
Recordo, igualmente, dos pressupostos então dimensionados para a avaliação dos quesitos, os quais, a propósito, prevalecem em qualquer Consulta, notadamente no que se refere ao viés eminentemente teórico das abordagens, ainda que de tudo naturalmente se abstraiam projeções para o enfretamento de situações análogas concretas.
E por isso, penso interessante iniciar esta análise partindo da curva de aprendizagem que as referidas consultas anteriormente nos proporcionaram, inclusive porque as questões que agora demandam o pronunciamento desta E. Corte focam essencialmente o conteúdo do artigo 8º da lei e, naturalmente, as repercussões decorrentes da combinação de seus incisos I e IX [1] , aspectos que, mutatis mutandis, já haviam suscitado nossa preocupação.
Rememorando aquele debate, portanto, a então leitura do art. 8º da norma complementar foi feita no sentido de se concluir que o intervalo que restringiu, tanto a concessão de vantagens econômicas (inciso I) como a contagem do respectivo tempo de Serviço Público como de período aquisitivo necessário à implantação de anuênios, triênios, quinquênios e licenças-prêmio (inciso IX) foi, para os fins financeiros da norma, apenas suspenso, restando assim, ao cabo da restrição, a retomada dos fluxos de tempo, tendo em vista o aproveitamento dos períodos obstruídos a partir da incidência da norma [2].
Tanto foi que nossa deliberação proclamou a seguinte cláusula: “[...] as disposições temporárias da LC 173/2020 aqui avaliadas, na exata correspondência de sua natureza, têm caráter peculiar e limitado ao tempo de sua vigência. Possuem como razão última aliviar a pressão nos gastos com pessoal neste período de enfrentamento da COVID-19, mas não subvertem o regime jurídico dos servidores ou anulam, senão adiam em tal hiato, direitos assegurados em lei. Estes seguramente serão resgatados ao final das importantes restrições ora em vigor, equilibrando-se, assim, as necessidades extraordinárias, com a disciplina jurídica basal que organiza o serviço público estadual e municipal [...]” [3].
Esse aspecto de nossa análise, portanto, restou em seguida corroborado nos controles pelos quais passou a Lei Complementar nº 173/2020 desde o assentamento de nosso prejulgado, ratificada sua constitucionalidade, em sede concentrada e sob diferentes enfoques.
Dito isto, vejo a matéria aqui repaginada e suscetível de ser avaliada conforme o atual contexto.
Destaco, assim, suportando-me no alentado Parecer oferecido pelo d. MPC nestes autos [4], o julgamento pela improcedência das já referidas ADIs 6442, 6447, 6450 e 6525, oportunidade em que o Excelso STF, ao reconhecer a constitucionalidade da Lei Complementar nº 173/2020, dela afastou eventuais vícios atribuídos ao respectivo processo legislativo iniciado pela União, ratificando, naquilo que aqui mais interessa, sua natureza de Direito Financeiro e, com isso, sua vocação para gerar efeitos, temporários e pontuais, sobre a organização financeira dos Entes Federativos, sem prejudicar, interferir ou modificar, portanto, os Regimes Jurídicos dos Servidores Públicos então em curso.
E a reconhecida natureza da Lei Complementar nº 173/2020, reitero e enfatizo, de Direito Financeiro por excelência, a ela atribui efeitos controlados e objetivamente modulados no espaço e no tempo circunscrito pelo período de crise aguda, tendo em vista fundamentalmente corrigir situações ou evitar hipóteses de desencontro entre receitas e despesas.
Suas disposições, assim, demandam avaliação no exato contexto de eventual desbalanceamento das Finanças Públicas em face do conjunto de incertezas trazido com a pandemia, consubstanciando, também por isso, regime fiscal e administrativo excepcional e orientado por restrição transitória de direitos.
Daí não parecer cabível qualquer dissidência com o Regime Jurídico dos Servidores Públicos, parcela do ordenamento que a Constituição atribui a cada Ente Federativo de forma especial, no que propicia a juridicização dos diferentes suportes fáticos abstratamente arrolados no correspondente Estatuto, servindo-lhes, assim, de vetor de eficácia [5].
Ou seja, quero com isso referir ao conjunto de direitos e obrigações, no que se incluem, naturalmente, as vantagens pessoais e repercussões financeiras decorrentes do tempo de Serviço Público prestado, que integram a esfera jurídica de cada Servidor Público (“lato sensu”) e, nessa dimensão do fenômeno jurídico, constituem elementos da relação jurídica que se forma e é conduzida pelo Regime de Direito Estatutário, intangíveis, portanto, pela norma de Direito Financeiro.
Assim, o momento, quero crer, permite concluir que a contagem do tempo de Serviço Público prestado no período de 28 de maio de 2020 a 31 de dezembro de 2021, para além dos efeitos de ordem previdenciária, podem, enquanto suporte fático descrito em Estatuto de Direitos, ser implantados e averbados, ainda que sem repercussões financeiras que retrocedam à data do aperfeiçoamento do adicional, se, evidentemente, anterior ao referido termo final do período de exceção.
E além das respostas para os quesitos que informaram os pedidos e que, nos termos regimentais, demandam nossa manifestação, peço licença a Vossas Excelências para, na oportunidade, lançar outras reflexões que a dinâmica do tema analisado naturalmente instiga e sugere.
Faço, assim, alusão ao ano de 2022, no qual nova legislação complementar foi promulgada (Lei Complementar nº 191/2022) para acrescer o § 8º ao artigo 8º da LC nº 173/2020 [6], tornando mais flexíveis os efeitos da não contagem de tempo de serviço para fins de adicionais, na medida que excluiu da regra transitória os Servidores Púbicos Civis e Militares da Área da Saúde e da Segurança Pública, sempre sob o ponto de vista financeiro de tais repercussões.
Ainda que tal norma tenha enfatizado que a eficácia do inciso IX do art. 8º da LC 173 continuava não gerando efeitos financeiros no período de restrição, tampouco superveniente direito ao percebimento de atrasados, fato é que a partir de então o legislador introduziu fator de discrímen ao conferir a carreiras de Serviço Público específicas tratamento diferenciado.
A par de a norma em tese estatuir comandos dissonantes de princípios constitucionais elementares, como o da isonomia, seu núcleo conceitual definitivamente abraça a tese que preserva o ato de concessão dos adicionais de tempo de Serviço Público enquanto corolários dos direitos subjetivos estatutários, do ponto de vista de sua intangibilidade em face da regulação da gestão financeira da Administração Pública que, de caráter emergencial e transitório, destina-se, como de fato se destinou, precipuamente a conter temporariamente o aumento da despesa no curso de sua vigência, apenas.
Caminhando para a conclusão, em resumo, conta-se o tempo de período de vigência da Lei Complementar nº 173/2020, visto que o Servidor Público manteve íntegra sua atividade laboral nesse interregno de validade da legislação extraordinária.
Nada se paga, entretanto, quanto a eventuais vantagens completadas nesse mesmo interregno, considerando o caráter financeiro protetivo estabelecido na Lei Complementar nº 173/2020, pedra angular da constitucionalidade de seus dispositivos.
Diante de todo o exposto, concluo esta análise propondo ao E. Plenário as seguintes respostas aos quesitos formulados:
1) Considerando que a Lei Complementar Federal n° 173/2020 é uma norma de direito financeiro, excepcional e de vigência temporária, segundo o Supremo Tribunal Federal, editada com a finalidade específica de disciplinar situação especial decorrente da pandemia da COVID 19, é possível a contagem do tempo de serviço prestado, no período de 27 de maio de 2020 a 31 de dezembro de 2021 após o decurso deste lapso temporal, para todos os efeitos administrativos, com fundamento no regime jurídico do servidor público estadual ou municipal?
RESPOSTA: Sim, é possível. A contagem do tempo de serviço prestado durante o período excepcional (a partir de 28/5/2020, data da publicação da lei) é medida que deflui da norma, dada a sua natureza jurídica de Direito Financeiro, conforme decidido pelo Excelso STF.
Assegura-se ao Servidor a averbação do mesmo tempo para fins Estatutários, inclusive de adicionais e outras vantagens ligadas ao tempo de serviço público, de acordo, portanto, com o quanto preceitua o regime jurídico consolidado em seu respectivo Estatuto;
2) Passado o período vedado na norma, a contagem do tempo de serviço prestado durante o período extraordinário da pandemia pode gerar consequência financeira, nos limites das regras previstas nos Estatutos dos Servidores?
RESPOSTA: Sim. Porém, assumida a Lei Complementar nº 173/2020 como norma geral de Direito Financeiro, bem assim tendo em conta os limites preceituados na Lei de Responsabilidade Fiscal, assegura-se a referida contagem com efeitos integrais (administrativos/estatutários e financeiros/patrimoniais) somente a partir do termo final do período excepcional, i.e, 1º/1/2022, vedado qualquer efeito financeiro que incida sobre o período de 28 de maio de 2020 a 31 de dezembro de 2021.
Determina-se efeitos de pré-julgado à decisão, com a necessária e ampla divulgação a nossos jurisdicionados.
Presente na sessão a Procuradora-Geral do Ministério Público de Contas Letícia Formoso Delsin Matuck Feres.
Os autos estão disponíveis, mediante regular cadastramento, no Sistema de Processo Eletrônico – e-TCESP, na página www.tce.sp.gov.br.
Publique-se.
São Paulo, 21 de julho de 2023.
SIDNEY ESTANISLAU BERALDO PRESIDENTE RENATO MARTINS COSTA RELATOR
Notas:
[1] “Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de: I - conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública; [...] IX - contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins [...]”.
[2] Abordamos então a possibilidade de complementação de tempo de serviço para fim de adicionais e licenças-prêmio, vantagens com assento no Estatuto dos Servidores do Ente Federado, com agregação do período aquisitivo contado anteriormente à publicação da Lei Complementar, concluindo que positivamente, tendo em vista “[...] a intenção do legislador de, a título de não aumentar a despesa durante a calamidade, atribuir ao intervalo restritivo caráter de suspensão do fluxo temporal, com retomada de eventual prazo remanescente a partir do termo final de vigência da lei complementar[...]” (cf TC-16638.989.20-2, Valdinezio Luiz Cesarin, Prefeito do Município de Mineiros do Tietê).
Ainda sob o enfoque dos adicionais e vantagens correlatas, se decorrentes de direitos suportados por norma anterior, incluindo, principalmente, as leis do orçamento (LO e LDO), concluímos, em princípio, que estariam preservados, ressalvadas certas alterações estruturais com reflexo direto no aumento de despesa.
[3] Cf. Parte final do Dispositivo do Voto, antecedente às respostas aos quesitos.
[4] TC-6395.989.23-9, evento 28 e TC-6449.989.23-5, evento 29.
[5] in TEORIA DO FATO JURÍDICO: PLANO DA EFICÁCIA. 1ª Parte – Marcos Bernardes de Mello – 3ª Edição Revisada – São Paulo – Saraiva, 2007. pp 11-27.
[6] “[...]§ 8º O disposto no inciso IX do caput deste artigo não se aplica aos servidores públicos civis e militares da área de saúde e da segurança pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que:
I - para os servidores especificados neste parágrafo, os entes federados ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de realizar o pagamento de novos blocos aquisitivos, cujos períodos tenham sido completados durante o tempo previsto no caput deste artigo, de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço;
II - os novos blocos aquisitivos dos direitos especificados no inciso I deste parágrafo não geram direito ao pagamento de atrasados, no período especificado;
III - não haverá prejuízo no cômputo do período aquisitivo dos direitos previstos no inciso I deste parágrafo;
IV - o pagamento a que se refere o inciso I deste parágrafo retornará em 1º de janeiro de 2022 [...]”.