* Sérgio Ciquera Rossi
    
A pandemia que passou, e ainda passa pelo mundo, assemelha-se a um furacão – tudo saiu do lugar e tudo mudou, afetando de forma cruel toda a humanidade, com impactos ainda inestimáveis. No entanto, a vida continua, ainda que em uma modelagem nova e nunca experimentada.

As mudanças desse furacão silencioso da COVID-19 refletiram em todos os seguimentos da sociedade, em especial na Administração Pública, que se viu subitamente diante de um inimigo invisível, requerendo uma ação rápida e coordenada para seu enfrentamento.
 
Além das inegáveis consequências na economia, somadas às naturais complexidades já enfrentadas pela Administração Pública, no sentido dos procedimentos necessários a serem cumpridos para garantir a lisura e a publicidade de seus atos, há que se admitir as novas adversidades decorrentes do cenário pandêmico: falta de leitos, escassez de insumos e equipamentos, insuficiência de profissionais para atendimento e toda a sorte de demanda estrutural necessária para esse combate.

Levando em consideração tais aspectos, a legislação foi significativamente abrandada, a fim de oferecer aos gestores condições de agilidade nas contratações, reduzindo consideravelmente as formalidades das normas vigentes. Nesse sentido, foram apresentadas alterações para as aquisições de bens e serviços e para as contratações de pessoal, sempre com o intuito de prestar pronto atendimento aos que necessitassem.

Cumpre destacar que esse cenário de combate à pandemia, e, por conseguinte, de gastos inesperados, não implicou em escassez de recursos. O Governo Federal concedeu auxílio financeiro que se mostrou, ainda que não na totalidade, mas em grande escala, suficiente para o enfrentamento da moléstia. Entre tais beneficiários destacam-se os Estados e os municípios. Números coletados pela Frente Nacional de Prefeitos apurou no Brasil que a “receita corrente do conjunto dos municípios cresceu 5,3% acima da inflação em 2020. Sem as transferências federais, teria havido queda real de 0,9%”. Essa afirmação coincide com os dados de São Paulo, consoante assentado nos registros deste Tribunal de Contas.

Esse favorecimento da legislação e o aporte adicional de recursos, todavia, não eximem os gestores de outras obrigações de ordem constitucional a que estão sujeitos. Refiro-me especialmente à aplicação de recursos no ensino, prevista no artigo 212 da Constituição Federal, e aplicação do FUNDEB. 

E aí que surge o dilema. Muitos entes públicos alegam que não tiveram condições para efetuar as aplicações obrigatórias. O Parlamento, por sua vez, propõe, a partir dessa alegação e do cenário de crise, anistiar Prefeituras que não tenham atingido os mínimos previstos de aplicação, fator esse ensejador de parecer desfavorável das contas anuais.

A questão não é tão simples. Ilustro. No fim de 2021, promoveu-se uma fiscalização ordenada sem precedentes na área da Educação, a maior fiscalização in loco e concomitante já feita pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Foram visitadas 486 unidades escolares distribuídas em 348 municípios, incluindo a cidade de São Paulo com escolas de responsabilidade do Governo Estadual, sob nossa jurisdição. 
O resultado dessa ação não foi nada animador, ao contrário, foi de profunda desolação e incúria. Mais de 80% das escolas não possuíam Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros, mais de 60% apresentaram instalações sanitárias precárias (banheiros sem papel higiênico, sem sabonete e/ou água, ausência de tampa, portas e até mesmo de vasos sanitários). Em um terço das escolas visitadas, verificaram-se paredes com rachaduras, pinturas descascadas e sinais de vandalismo, e na metade das escolas encontramos quadras poliesportivas também com estruturas deterioradas, inutilizadas ao propósito pretendido. No transporte escolar igualmente o cenário desfavorece – em mais da metade, danificações de toda a sorte: bancos e assentos quebrados, ausência de cintos de segurança e de extintores de incêndio, pneus carecas e até a constatação de cidadãos utilizando o transporte escolar, como se fosse transporte coletivo. Esses e outros dados alarmantes foram registrados no relatório produzido e disponibilizado no site do Tribunal de Contas. 

Além disso, refletindo sobre esse interregno da pandemia e do isolamento necessário, perdeu-se ainda oportunidade de implementar cursos ou orientações online de aperfeiçoamento para o magistério, dotando os professores de ferramentas para o ensino totalmente digital, de modo a não ter tanta discrepância no aprendizado escolar. Alguns o fizeram, ou pelo menos tentaram. A grande maioria quedou-se inerte, nos termos dos jargões jurídicos utilizados por este Tribunal. 

É claro que não podemos generalizar, mas a falta da aplicação dos recursos obrigatórios na Educação, na maioria dos casos, não se deu em decorrência dos efeitos da pandemia, mas por absoluta e reiterada falta de atenção com atos de gestão e com o cuidado rotineiro com a Administração Pública. 

Esse cenário, a meu ver, aponta para o Tribunal de Contas do Estado a necessidade do cuidadoso exame caso a caso – e na eventualidade de, no caso concreto, não ter elementos técnicos suficientes para emitir parecer desfavorável das contas como um todo, pelo menos deixar registrada formalmente a inércia do responsável. 

Caso a caso também será, na área da Educação, a tarefa de avaliar a aplicação dos 10% acrescidos ao percentual do Fundeb, em legislação recém-aprovada. Não me parece razoável que a aplicação tenha sido realizada sem lei autorizadora e sem critérios objetivos, ou seja, somente para cumprir o percentual que, em razão do curto espaço de tempo entre a aprovação e a aplicação, talvez recomendasse depósito em conta especial para concessão. Este ato, cercado de critérios seguros e coerentes com a destinação e alcance ao modelo da Lei de Diretrizes e Bases, recentemente foi sancionado pelo Presidente da República, aliás de observância obrigatória doravante.

Aos que defendem a ‘anistia’ ampla e irrestrita fica a lembrança do que poderia ter sido feito: os dados aterrorizantes do cenário que encontramos nas nossas escolas e a lástima pela oportunidade que perdemos para minimizar a queda do aproveitamento escolar de nossas crianças, cujos efeitos veremos na Educação por muitos e muitos anos ainda.

Por último, necessário assinalar que se trata de entendimento pessoal que não cria vínculo de nenhuma espécie.

* Sérgio Ciquera Rossi é Secretário-Diretor Geral do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP).