* Alexandre Manir Figueiredo Sarquis

Natureza jurídica é uma expressão adequada ao estudo da aplicação de normas destinadas a certas circunstâncias e certos casos, a outras ou outros. Melhor explicando, se algo é da mesma “natureza jurídica”, deve ter acerca de si reconhecidos os mesmos ônus, condicionantes, obrigações e cuidados que aqueles que ocorreriam naquilo que lhe é “aparentado”.

O paralelo, no entanto, não deve ser exagerado, sob risco de criar norma onde a intenção do legislador era o silêncio. Com isso, a analogia permitida é aquela que estende o sentido somente até ponto em que se prova de acordo com os demais princípios regentes, limiar sutil, melhor esclarecido com a atividade doutrinária, que é a proposta deste artigo.

Seria ocioso perguntar qual a “natureza jurídica” das coisas em Direito Administrativo? Alguém poderia assim se apressar a concluir que sim, afinal de contas na administração pública somente se pode fazer o que literal e pormenorizadamente já consta da norma: não há qualquer cancha para elucubrações. Mas essa é uma visão que está se provando rapidamente ultrapassada. Talvez até mais que ultrapassada: errada mesmo, desde a sua concepção.

O Direito Administrativo não é imune à interpretação analógica como meio para esclarecer a norma, em obediência ao princípio de igualdade de soluções para situações equivalentes. A interpretação da lei no campo do Direito Administrativo deve, assim, ser processada de acordo com as mesmas regras de interpretação das leis em geral, já ensinava o Professor Guido Zanobini na Universidade de Roma há um século (Corso di Diritto Amministrativo. Vol I. Milão: Dott. A. Giuffre, 1936, p. 33. 3ª reimpressão Itellectus Livraria Goiânia).


Qual a natureza jurídica do Registro de Preços?

E é bom termos a analogia na caixa de ferramentas, pois se vamos ao texto normativo, ele não ajuda tanto: ao art. 28, §1º da Lei 14.133/2021  consta que “além das modalidades referidas [...] a administração pode servir-se dos procedimentos auxiliares previstos no art. 78” e, em meio a estes, de fato, consta o registro de preços (art. 78, IV). Então seria um procedimento auxiliar, não uma modalidade, mas esse seria similar à modalidade. Não ajuda muito, pois essa disposição não impede que sejam editados pregões – uma modalidade - para “formação de registro de preços” – um procedimento auxiliar – isso sem despertar qualquer surpresa.

Não ajuda ainda mais porque, seja “modalidade”, seja “procedimento auxiliar”, seja “sistema”, o que verdadeiramente nos interessa não é o procedimento, mas o negócio jurídico enfim entabulado, negócio este que, se usualmente intitulamos “registro de preços”, é mais corretamente denominado “ata de registro de preços”, uma metonímia ou sinédoque.


Qual é a natureza jurídica da Ata de Registro de Preços?

A lei a identifica como documento “vinculativo e obrigacional” (art. 6º, XLVI) embora acabe por mencionar muito mais obrigações para o contratado do que para a Administração Pública. Não é contrato administrativo no sentido de que não poderia o empresário deduzir validamente a pretensão de que a administração pública o conclua efetivamente, ordenando os quantitativos registrados – trata-se de mera expectativa. Tampouco é contrato aleatório, pois embora dependa desse fato futuro, ele não é incerto.

Mais se assemelha à “promessa de compra e venda” e a outros “contratos preliminares” do Direito Privado, perfeitos em tudo mais quanto se faz essencial no contrato principal, salvo pelo implemento de alguma condição suspensiva que, no caso da ata de registro de preços, é a manifestação de vontade do parceiro público – a ordem de fornecimento.
As ordens de fornecimento ou os contratos sacados da ata são, esses sim, contratos administrativos. Fica ainda uma relação incidental a considerar, a “carona”.

Qual é a natureza jurídica da Carona?

Não é apenas da manifestação de vontade do titular da ata que surgem os contratos principais nela fundados. Outros interessados podem provocar tal contratação, ainda que não constem originalmente do contrato preliminar. O fenômeno, da alcunha infame “carona”, teve vida bastante atribulada em meio à rejeição dos Tribunais de Contas (houve uma série de abusos no passado) até ganhar contornos legais no art. 86, §2º com o nome “adesão de não participante”.
O contrato principal nasce, portanto, da manifestação unilateral de vontade de qualquer administração pública de nosso Brasil, pendente da anuência do gestor da ata e de seu fornecedor. Nessa homologação, deve ser analisada a quantidade solicitada por cada caroneiro (não deve exceder 50% do registrado) bem como o total já deferido a esse título (não deve exceder 200% do registrado), em atenção ao §§s 4º e 5º do art. 86.

É assemelhado, portanto, a ato complexo, pois se inicia com uma autoridade, mas é aceito por outra. Essa classificação não aplaca nossa curiosidade por “natureza jurídica”. Acostumados que estamos às classificações e aos escaninhos metodológicos, desejamos saber o que se anota no formulário e o que se registra na contabilidade.

Registro a aquisição como decorrente de “pregão”? Cogitar-se-ia isso porque o procedimento originalmente conduzido pelo gestor para formar a ata deve ter sido um pregão. Perceba, entretanto, que é possível formar atas por dispensa ou inexigibilidade consoante autorizado no art. 82, §6º, fato que pode até mesmo proibir a carona, a teor do art. 86, §3º, II, in fine (“... desde que o sistema de registro de preços tenha sido formalizado mediante licitação”).

Se simplesmente anotássemos “pregão”, entretanto, teria sido um “pregão” conduzido por outra Administração, traindo uma gama de outras ligações e inferências que a informação suscitaria, não deixando claro o que ocorreu. Parece mais uma “dispensa de licitação”, mas aí o que faltaria seria inciso, pois as dispensas vivem apegadas aos respectivos permissivos legais.

Durante o califado da lei de licitações anterior, eu não hesitaria em aproximar o inciso VII do art. 24 da lei 8666/1993 (“quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis com os fixados pelos órgãos oficiais competentes, casos em que, observado o parágrafo único do art. 48 desta lei e, persistindo a situação, será admitida a adjudicação direta dos bens ou serviços, por valor não superior ao constante do registro de preços, ou dos serviços”).

Esse inciso VII exibia uma pronunciada preocupação com a economicidade e com a aferição do parâmetro de mercado, o que também aparece na adesão pela nova lei, perceba, por exemplo, as estimativas de preços repisadas aos arts. 82, §2º, art. 84, art. 86, §2º, II e art. 86, §6º. A nova versão da mesma dispensa, entretanto (art. 75, III, “b”), não repete a menção a “registro de preços”, não prestando a esse fim.

Nada sacode minha impressão de que, na carona, ainda teríamos natureza jurídica assemelhada à dispensa de licitação que, consoante tal espeque, teria de ser analisada. Como sabemos, as hipóteses de dispensa de licitação não se alargam, nem se inovam, pois não se misturam. São puras ou simplesmente não se aplicam. Precisaríamos de um inciso, pois aqui existe a chamada “tipicidade cerrada”, inimiga da analogia.

Mas se o inciso não for bem inciso?

Perceba que o conjunto do art. 86, §2º, que regula a “carona”, agora “adesão de não participante”, traz uma série de condicionantes e hipóteses subjetivas e objetivas de cabimento, bem à semelhança das demais contratações diretas que constam dos arts. 74 e 75. Poderíamos concluir, portanto, que a carona tem natureza jurídica de dispensa de licitação, mas extravagante, não constante do art. 75, mas regulada pelo art. 86, §2º e adjacências.

Quais são os desdobramentos práticos dessas divagações jurídicas?

Os romanos constantemente repudiavam divagações meramente filosóficas, aquelas sem qualquer prescrição final para a conduta dos cidadãos. O Direito, afinal, haveria de ser ciência pragmática e eminentemente prática. Com maior razão deve o Direito Administrativo sê-lo, pois surge diretamente das atribulações cotidianas da Administração Pública.

Se concluirmos que Ata de Registro de Preços é contrato preliminar e que Carona é dispensa de licitação extravagante, há alguma consequência prática, na medida em que essa analogia é útil e consentânea com os princípios da administração pública?

1. Pode uma ata de registro de preços formada com base na legislação revogada (leis 8.666/1993, 10.520/02 e RDC) manter a vigência em 2024? Pode ser prorrogada com base na nova lei? A formação da ata deve estar prevista no Plano de Contratações Anual? Na prorrogação ocorre a renovação dos quantitativos originalmente registrados?

Se ata de registro de preços é contrato preliminar, então é espécie de contrato, e, portanto, vale para ele o que consta do art. 190 da nova lei (“O contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada”). Com isso, a lei 8666/1993 permanece ultra ativa, regulando as atas formadas segundo suas regras.

Não pode a ata da lei anterior, entretanto, ser prorrogada com base no art. 84 da nova lei (“o prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso”), pois atende às regras da legislação antiga, entre as quais consta o art. 15, §3º, III da lei 8666/1993 (“validade do registro não superior a um ano”).

De outra mão, tendo em vista que o Plano Anual de Contratações (art. 12, VII) é documento de planejamento vocacionado a centralizar e racionalizar as contratações do exercício financeiro subsequente, parece razoável que dele constem as formações de ata de registro de preços ao longo do exercício, a despeito de não serem contratos administrativos em sentido estrito, pois são contratos preliminares.

Mesmo que as efetivas contratações principais ocorram somente após emitidas as respectivas ordens de serviço, podem ambas as contratações constar do PCA de alguma forma, talvez incluindo referências recíprocas. É importante imaginar uma forma de evidenciação que seja fiel tanto a ideia de registro de preços quanto a de Plano de Contratações Anual.

Por fim, acaso tivéssemos um contrato administrativo de fornecimento, em que é previsível o consumo de cotas estáveis mês a mês, seria da intimidade de tal relação que a prorrogação se faça acompanhar da manutenção das quantidades fornecidas para o novo exercício. Registros de preços amiúde exibem essa característica, sendo consumidos regularmente mês a mês. Ao contemplar a possibilidade de prorrogação (art. 84), a lei presume que ao fim do período inicial as quantidades serão renovadas para o novo ciclo que se inicia, à semelhança do que ocorreria em contratos administrativos equivalentes.

Não sem razão a reunião técnica do Instituto Nacional da Contratação Pública (INCP) ocorrida em março de 2024 formulou os seguintes enunciados acerca da questão.
ENUNCIADO 17. A prorrogação da Ata de Registro de Preços admite a renovação das quantidades registradas, independentemente de previsão no edital ou na ata.
ENUNCIADO 18. Excepcionalmente, nos casos de esgotamento da quantidade registrada, será admitida a antecipação da prorrogação, pelo prazo máximo de doze meses, com a renovação das quantidades. 

2. Qual o procedimento prévio para carona? É necessário orçamento estimativo ou Estudo Técnico Preliminar? É possível pegar carona em ata de registro de preços regulada pela lei 8666/93? É possível a “auto carona”?

Se a carona tem natureza jurídica de contratação direta, seu procedimento guarda atenção a todos os cuidados das demais dispensas de licitação, o que importa, em primeiro lugar, verificar exaustivamente se todos os requisitos subjetivos, objetivos e circunstanciais encontram-se integralmente preenchidos.

Por exemplo, o art. 86, §2º, III menciona a aceitação do órgão gestor. Imagine que tal aceitação não tenha ocorrido, mesmo porque seria impossível - o quantitativo disponível para carona se encontra esgotado ou a sua vigência já se esgotou. Poderíamos estar diante de uma contratação direta ilegal, art. 337-E do Código Penal.

Imagine que a aceitação veio, mas é assinada por quem não dispõem de competências regimentais bastantes a manifestar-se pelo órgão. Sobrevindo a constatação de que aquelas autorizações sobejaram o quantitativo disponível, parece-me plausível cogitar a prática de irregularidade não apenas por parte do agente autorizador, mas também daquele que descuidou a aferição de competência da autoridade aceitante.

Como medida prévia à adesão, é indispensável a realização de orçamento estimativo nos moldes do art. 23, §1º, mesmo porque a menção a tal providência é expressa não uma, mas duas vezes: ao art. 86, §2º, II e ao art. 86, §6º.

Questão diferente é a necessidade de realizar Estudo Técnico Preliminar. A dúvida reside no fato de que o documento originalmente elaborado pela gestora da ata deve estar disponível em algum lugar, apto a ser tomado de empréstimo pelo órgão que vai intentar a carona. Poderia este fazer as vezes daquele?

Aqui parece útil a analogia da dispensa de licitação, uma vez que aproxima a aplicabilidade do art. 72. Segundo esse dispositivo, em contratações diretas, é necessária a instrução do “documento de formalização de demanda e, se for o caso, estudo técnico preliminar, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo” (art. 72, I). Enfim, o planejamento a que a lei faz menção em tantas passagens não é aquele idealizado externamente, por pessoas desconhecedoras das necessidades locais, por mais elevadas que sejam tais cogitações. O planejamento é aquele oriundo das instâncias decisórias do próprio órgão.

Sem dúvidas, o Estudo Técnico Preliminar originalmente elaborado pelo órgão gestor da ata poderá conter elementos úteis, mas, no mais das vezes, parece obrigatória a elaboração de um Estudo Técnico Preliminar próprio, que vai enfeixar pela possibilidade de ocorrer a adesão pretendida. Por óbvio que, conforme dispuser a regulamentação local, a elaboração do ETP pode ser dispensada ou simplificada nas circunstâncias que especificar. Por exemplo, na ocorrência de emergências, nas hipóteses de baixo valor ou em execução descentralizada de programa ou projeto federal em que a adesão a determinada ata federal seja obrigatória (art. 86, §6º).

Por fim, em se compreendendo que a carona é contratação direta, ela deve observar especial apego à hipótese autorizadora. A ata que autoriza carona é aquela formada ao abrigo da Lei 14133/2021. Parece não haver caminho para adesão por carona em ata formada sob a égide da Lei 8666/1993.

Ademais, a diversidade entre órgão gestor e órgão carona é clara na redação do art. 86. Se o órgão que deseja realizar aquisições é, ele mesmo, o gestor da ata, tem a favor de si a integralidade dos quantitativos registrados. Os órgãos devem resistir a tentação de conceder carona a si mesmos, aumentando artificiosamente o quantitativo originalmente registrado de 100% para 150% do total – a “auto carona”.

Em eventualmente ocorrendo exaustão prematura da quantidade registrada, há a possibilidade da prorrogação antecipada de que trata o Enunciado 18 mencionado acima, o que pede, entretanto, justificativa da situação imprevisível que levou a tal necessidade, como a expressão “excepcional” constante do início daquele enunciado deixa claro.

3. Na carona, quem presta contas e a qual Tribunal?

Há, entretanto, questões que a analogia não soluciona e, pior, atribula. Por exemplo, em se tratando a carona de ato complexo, como visto acima, é possível que concorram manifestações de autoridades públicas jurisdicionadas a Tribunais de Contas diversos, um pelo lado do solicitante da adesão e outro pelo lado do gestor da ata.

Deveria a autoridade subordinada a um Tribunal ser excepcionalmente chamada a prestar contas de seus atos no outro Tribunal? Responderia a autoridade aderente pelos eventuais vícios do edital elaborado naquela outra jurisdição?

Embora o cuidado na análise da qualidade daquilo a que se adere nunca seja cautela despicienda, a segurança jurídica deve nortear o eixo das cogitações dos Tribunais de Contas. Os poucos pontos de atrito nas jurisdições de contas nacionais não devem levantar empecilho para ultimar uma possibilidade que consta expressamente da Lei.

E, há outro ponto de controle ainda. Refiro-me ao controle do próprio contratado. Não é demais chamar a atenção para o fato de que não apenas a autoridade gestora da ata consente com a carona, mas também o fornecedor. Também ele deve analisar os requisitos objetivos e subjetivos da carona, a fim de que esteja apto a prestar contas sobre o fornecimento que praticou.

* Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Auditor-Substituto de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)