*Thiago Pinheiro Lima

A interpretação do conteúdo de um ato normativo desencadeia acirrados debates sobre o sentido e o alcanço do texto legal, sendo habitual a construção de orientações doutrinárias e jurisprudenciais dissonantes sobre os mais variados temas.

É que o direito não se traduz em ciência exata, permitindo aos seus operadores leituras e interpretações diversas, ainda que lastreadas em idênticos princípios e normas gerais. 

Dentre os temas que apresentam essa diversidade de interpretações, um dos que mais têm suscitado dúvidas atualmente perante aqueles que militam no âmbito do direito administrativo é o da Revisão Geral Anual (RGA), especialmente no que concerne à possibilidade de sua aplicação aos agentes políticos.

Por mais induvidoso que o texto do artigo 37, inciso X, da Constituição da República, possa parecer numa primeira leitura, cumpre relembrar que referido mecanismo revisional não se confunde com aumento real, isto é, não se trata de majoração deliberada de vencimentos, e sim de mera recomposição do poder aquisitivo da moeda, tão necessária em um país com histórico inflacionário como o nosso. 

Disso decorre que, por meio desse relevante direito previsto na Constituição, buscou-se preservar a contraprestação pecuniária daqueles que laboram no âmbito da Administração Pública dos efeitos da perda inflacionária.

Até aqui, nenhuma dúvida parece acometer os intérpretes, que, salvo engano, são uníssonos acerca dessa compressão do instituto da RGA. O problema surge em relação a quem esse direito aproveita.

Isso se deve, basicamente, por conta de outros dispositivos constitucionais, que, lidos em conjunto com o artigo 37, inciso X, podem ensejar multiplicidade de entendimentos.

É o caso, por exemplo, do artigo 29, inciso VI, da Constituição da República, que assim estabelece: “o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subsequente, observado o que dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os seguintes limites máximos”.

Trata-se da denominada “regra da legislatura”, por meio da qual os subsídios da vereança são fixados pela própria Câmara Municipal em cada legislatura para a subsequente, vedando-se, com isso, que se legisle em causa própria.

E é aí que reside o aspecto determinante da indigitada divergência interpretativa: se para uns a revisão não se confunde com fixação ou aumento e, por isso, estaria assegurada também aos detentores de mandato eletivo, para outros, a regra da legislatura, combinada com o princípio da moralidade administrativa, deve ser tomada de maneira ampla, de modo a impedir toda e qualquer alteração remuneratória para estes agentes políticos no curso do mandato, ainda que a título de RGA.

Para essa segunda tese interpretativa, a RGA seria um benefício assegurado exclusivamente aos servidores públicos, havendo para os Vereadores regramento próprio que impediria a recomposição inflacionária do subsídio durante a legislatura.

Há, inclusive, compreensão mais rigorosa, no sentido de que não só os Vereadores, mas também os demais agentes políticos, como Prefeitos e Vice-Prefeitos, e até mesmo Secretários Municipais, não fazem jus à RGA, visto que a eles igualmente seria aplicável a regra da legislatura.

Na prática, o que se tem observado, em linhas gerais, é que decisões do egrégio Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP) têm acolhido a inteligência de que, por não se tratar de ato fixatório ou reajuste, a RGA pode ser concedida aos Vereadores; já para o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e Poder Judiciário em geral, inclusive o colendo Supremo Tribunal Federal (STF), a RGA não seria extensiva aos edis, porquanto tal prática afrontaria a regra da anterioridade da legislatura. 

Como se vê, trata-se de matéria que comporta interpretações diversas, e, como tal, impossível analisá-la sem algum componente de índole subjetiva.

De qualquer modo, e a despeito da opinião pessoal deste subscritor no sentido de que as decisões do TCESP estão corretas do ponto de vista da interpretação constitucional, o Ministério Público de Contas de São Paulo (MPC-SP) tem se posicionado na mesma linha do Parquet estadual e do Judiciário.

É que a concessão de RGA a Vereadores pode alcançar consequências gravosas, como se tem visto na jurisprudência dos tribunais judiciais, que já consideraram tal prática ato de improbidade administrativa e enriquecimento ilícito, podendo acarretar rigorosas sanções àqueles que contrariam a orientação que veda referida percepção.

Desse modo, se não por convicção, ao menos por prudência, cumpre ao Poder Legislativo Municipal reavaliar a conveniência de conceder RGA aos senhores Vereadores.

Vale ressaltar, por fim, que, não obstante reiterados julgados na esfera judicial acerca do tema, a matéria será apreciada sob o prisma da repercussão geral, já que o plenário virtual da Suprema Corte, por unanimidade, reconheceu tal condição no Leading Case RE nº 1.344.400, formalizado sob o tema nº 1.192, onde se questiona, não por acaso, lei de um município paulista, propondo-se o seguinte enunciado: “É inconstitucional lei municipal que prevê o reajuste anual do subsídio de agentes políticos municipais, por ofensa ao princípio da anterioridade, previsto no artigo 29, VI, da Constituição Federal.”

A expectativa acerca do julgado é grande, já que, embora reconhecida repercussão geral da questão suscitada, no mérito, o plenário virtual do STF optou por submeter a matéria de fundo a posterior julgamento no plenário físico, tendo a Procuradoria-Geral da República se manifestado recentemente pelo acolhimento da tese proposta no enunciado descrito no parágrafo anterior.

*Thiago Pinheiro Lima é Procurador-Geral do Ministério Público de Contas junto ao TCESP e Presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Contas